A morte de George Floyd, vítima da brutalidade policial em Minneapolis, forneceu a faísca. Propagou-se o fogo a partir do joelho homicida do supremacismo branco, encarnado no fardado que não parou de sufocar Floyd mesmo que este gemesse e gritasse “I can’t breathe!” (“não posso respirar!”). Este martírio – mais um! – acendeu o incêndio de revolta contra o Pesadelo Americano.
A reação insurrecional incendiária através dos EUA começou em Minneapolis, onde manifestantes deram início a uma jornada de riots em que fizeram arder delegacias de polícia – as impressionantes imagens correram o mundo.
Não demorou para que potências da black music, como a cantora de R&B H.E.R., os veteranos do rap Public Enemy e o heavy metal do Black Pantera, compusessem músicas sobre a nova conjuntura:
No Brasil, alguns de nossos melhores jornalistas, como Eliane Brum e Mateus Pichonelli (links na sequência), não tardaram em estabelecer os paralelos entre a situação nos Estados Unidos e o exacerbamento dos massacres perpetrados por PMs nas favelas, sobretudo do Rio e de São Paulo – além das famosas “balas perdidas” que nunca encontram um adolescente branco numa escola privada, mas têm a mania de encontrar corpos negros de crianças em seus barracos…
Quando explodiram as manifestações anti-racistas em dezenas de cidades dos EUA, o país ultrapassava os 2 milhões de cidadãos infectados com o novo coronavírus. Alguém aí pensou na expressão, que prolifera cada vez mais: “a tempestade perfeita”?
Célebre por suas atitudes repletas de xenofobia, islamofobia e supremacismo branco, Donald Trump têm usado e abusado de uma retórica que visa culpabilizar os chineses pela disseminação do que vem chamando de “kung flu”. Estratégia diversionista que parece querer lançar a responsabilidade pela crise bem longe de seus ombros enquanto o número de óbitos extrapola, em dezenas de milhares, o número de soldados estadunidenses que pereceram durante os anos da Guerra do Vietnã.
Além disso, Trump agora declara guerra àqueles que chama de “terroristas domésticos”, esse pessoalzinho que fica de balbúrdia em Seattle ou Minneapolis…
Entrando em plena convulsão social, os EUA agora é palco de um embate épico: em levante contra a extrema-direita Trumpista, eis que surge a “Zona Autônoma” de Seattle: ativistas tomaram o controle de uns 10 quarteirões da cidade, inclusive conquistando controle de uma delegacia de polícia, transformada de police department em people’s department. Sob ameaça de repressão brutal, a Zona Autônoma de Seattle terá resiliência para durar alguns meses (como pôde, em 1871, a Comuna de Paris)? Poderá inspirar levantes autonomistas similares em outros centros urbanos dos EUA?
SAIBA MAIS: THE NEW YORK TIMES:
É notável que Seattle uma das principais metrópoles do país, a terra nativa do grunge, seja o palco da emergência de uma comuna que parece revitalizar as práticas e os reclamos do Occupy Wall Street, ou seja, reativa as demandas dos “99% contra os 1%” (para uma leitura mais aprofundada do que está por trás do slogan, recomendamos a leitura de Um Projeto de Democracia de David Graeber).
Tudo isso ocorre também em meio à emergência de uma “bandeira” que está bombando mais do que nunca: Black Lives Matter (Vidas Negras Importam)! Porém, não sejamos ingênuos: esta uma causa anti-racista, decerto importante, revela-se problemática quando atentamos para as forças sociais que estão empunhando esta bandeira. Segundo Pepe Escobar (em entrevista a Attuch na TV Brasil 247), o Partido Democrata, com dollars de grandes corporações e magnatas (a exemplo de Ford), está “cooptando” a pauta das vidas negras que importam, utilizando-a em prol de seus próprios fins. Afinal, em ano eleitoral, após o sepultamento da candidatura mais socialista e radical de Bernie Sanders, os democratas, interessados na eleição de Bidden, disputam o eleitorado que hoje abraça o repúdio à Trump e se sente representado pelo Black Lives Matter.
Decerto que há anarquistas e autonomistas tanto na Comuna de Seattle quanto nos fronts da luta antiracista. São estes os insurretos de Seattle que já estão sendo brutalmente criminalizados desde a Casa Branca, a começar pelo Trollador-Chefe da nação, o populista de direita Donald Trump, que adora uma bravata de Twitter contra os esquerdistas. Mas é preciso também compreender que o atual movimento “contestador” nos EUA envolve também uma campanha orquestrada desde o campo dos liberais “democratas” na tentativa de passar a perna no republicano neo-fascista Trump.
Esbravejando pelo Twitter contra os “anarquistas feios”, Trump vem ameaçando mobilizar as Forças Armadas para acabar com a experiência da Comuna de Seattle. Porém, Trump carrega hoje o fardo de uma crise de sua legitimidade – sobre seus ombros, pesam os mais de 125.000 cadáveres daqueles que já perderam a vida para a pandemia de covid 19. A popularidade do Trumpismo está em declínio e sua legitimidade é altamente contestada não apenas pelas insurreições populares, mas também no alto escalão das autoridades públicas eleitas – como fez a prefeita de Washington ao mandar pintar, em letras gigantes, em uma das ruas que rodeia a Casa Branca, um gigante Black Lives Matter.
A proeza – pintar o lema numa rua nas proximidades da White House, onde não seria possível a Trump ignorá-lo – parece ter sido iniciativa da prefeita “Muriel Elizabeth Bowser, mulher negra, 47 anos, solteira e mãe de uma filha adotiva, integrante do Partido Democrata” – segundo Inês Castilho, em reportagem para Outras Palavras. “Pessoas de todo o mundo agradeceram à cidade ‘por reconhecer a humanidade negra e as vidas negras’. Mas ativistas locais logo criticaram sua ‘obra de arte afirmativa’, chamando o ato de ‘performativo’ e uma forma de distração para o fracasso da prefeita em fazer mudanças substanciais no sistema de justiça criminal da cidade.
No sábado, contudo, dia seguinte à sua iniciativa e quando aconteceram os maiores protestos em Washington após a morte de George Floyd, ativistas carregaram para ali baldes de tinta amarela. Usando o mesmo tipo de letra, acrescentaram “Defund the Police” à declaração da prefeita, transformando as estrelas da bandeira da cidade no sinal “igual”. O mural passou então a declarar “Black Lives Matter = Defund the Police” [Vidas Negras Importam = Cortar Financiamento da Polícia].” (CASTILHO, Inês)
Escobar denuncia, porém, que há uma ONG por trás do Black Lives Matter (acesse o site oficial), fundada em 2013, que representaria uma tendência à “corporativização da militância” – inclusive fazendo parte do “bolo” de ONGs que receberam U$ 100.000.000 da Fundação Ford em 2016. Ora, isto pouco tem a ver com os Panteras Negras, dos anos 1960, que fundaram o Partido Black Panther Party muito calcados em leituras marxistas, maoístas, fanonianas, malcolm-xianas, propondo uma guerrilha revolucionária em prol da emancipação negra e do “Power To The People” (Poder Para o Povo), em aberta ruptura com o establishment Yankee.
O contraste entre os Black Panters e o Black Lives Matter é algo a investigar mais a fundo. Assim como vale a pena pensar criticamente se o Brasil deveria “importar” o movimento, traduzido direto dos EUA, quase num xerox, para instaurar aqui um “Vida Negras Importam” que fosse o símile daquele ao Norte. Recentemente, perguntei ao Jones Manoel o que ele pensava sobre isso, e eis o que nos respondeu (durante o evento Ciências Sociais em Movimento do IFG):
No fim do século 20, vale lembrar, Seattle foi o palco histórico das manifestações populares que goraram a reunião da OMC (Organização Mundial de Comércio) – com altas pancadarias rolando entre as forças de repressão e os manifestantes, os cidadãos nas ruas impuseram uma notável derrota, através de protestos ruidosos e desordeiros, à World Trade Organization, um dos pilares da neoliberalização predatória imposta mundo afora pelo 1% de capitalistas impiedosos. Naquela ocasião, em 1999, nas artes também se manifestou, através daa música punk-grunge do NO WTO COMBO, que uniu Jello Biafra dos Dead Kennedys, Kim Thayil do Soundgarden e Krist Novoselic do Nirvana, um protesto vigoroso contra o “novo feudalismo” constituído pelo fundamentalismo de mercado mancomunado com o Estado policial-carcerário estruturalmente racista.
No cinema, The Battle in Seattle, um filme de Stuart Townsend, realizou uma crônica tensa, tornada inesquecível também pela atuação de Charlize Theron, daqueles dias tão subversivos em que a WTO (World Trade Organization) rendeu-se à força do povo.
Mais de 2 décadas depois, Seattle – celeiro do cenário Grunge que revolucionou o rock a partir do fim dos 1980 e começo dos 1990, propulsionada pela SubPop – está de novo no epicentro do furacão de uma superpotência em caos.
A ser continuado…
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. UM POUCO DE MÚSICA:
Publicado em: 29/06/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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